domingo, 26 de setembro de 2010

O desnorte

A colega Ana Jorge, que além de pediatra é ministra da saúde, entrou na longa colecção de ministros que diz dislates em questões técnicas que devia dominar. Em entrevista à Sábado li a frase de sua autoria 'Os meios complementares de diagnóstico (MCD) de rotina têm de acabar'.

É verdade que o SNS gasta (ou utiliza) muito dinheiro em MCDs. É verdade que muitas vezes estes são desnecessários. É verdade que há muito espaço para ganhar eficiência nesse campo. Mas...

1. Ouvir de uma médica que os MCDs de rotina têm de acabar é impensável. Há muitos MCDs de rotina que têm indicação clínica, que comprovadamente têm eficácia. Vamos ter de deixar de fazer papanicolaus às nossas doentes? Mamografias de rastreio? A Dr Ana Jorge vai desaconselhar o 'teste do pezinho' aos seus neonatais doentes?

2. Sim, há muitos MCDs que eram escusados. Mas quem está a levar a medicina a basear-se neles é o ministério, com os sucessivos ministros e governos numa lógica de produtividade com base em números de consulta e afins. Quando os médicos de família têm de ver uma agenda com imposições superiores de quem não percebe do ofício, é muito mais fácil pedir um RX ou um urograma em vez de investir um bocadinho mais de tempo a fazer um exame físico mais pormenorizado e 'perde' um bocadinho de tempo a explicar a situação (a dar confiança ao doente do porquê de não se pedir exames nem prescrever uma carrada de medicamentos). Mas esse tempo de qualidade não é transponível em indicadores, e é isso que move o mundo hoje em dia.
Para um médico num serviço de urgência caótico (e estão caóticos pela destruturação das equipas, pela contratação de pessoal avulso) que veja um doente com um problema neurológico, é muito mais fácil pedir um TAC e pedir à máquina que veja o que tem o doente que fazer um pormenorizado exame neurológico.

3. Com a empresarialização dos hospitais, nomeadamente dos universitários, o exemplo dado às camadas jovens (alunos e recém licenciados em medicina) é de uma medicina baseada nos MCDs. Pior que boa parte da classe médica utilizar os MCDs como base da sua medicina é não saber fazer outra coisa. Agora, ainda há ponto de retorno.