O síndrome da bata branca no lar… o outro lado da história
Tic-tac, tic-tac… 6:15… triiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmm. ‘A vida é mesmo injusta… mas eu acabei de me
deitar! Ainda por cima está frio!’ Vá, Ana Catarina, toca a levantar de uma
só vez antes que adormeças no segundo a seguir ao despertador se calar. ‘Dava tudo para não ter que sair daqui…’.
Despeço-me do meu marido num sussurro, como se ele não se tivesse apercebido do
meu despertador, ‘Bom dia, Jonny! Dorme
bem, Jonny!’, e tento encontrar a casa de banho. Depois da cara lavada e da
miopia corrigida, o mundo torna-se um pouquinho menos negro. E depois do balde
de café da manhã fica cinzento-antracite.
Nesta terça-feira de Outono ainda é noite quando entro no
carro. Adoro a calma daquela hora da madrugada. (Cinzento). O noticiário da TSF
abre com notícias sobre o ébola: Especialista
em saúde pública diz que Portugal não está preparado para lidar com ébola. ‘Que novidade!...’ Começa a chover, os
vidros ficam embaciados e eu tenho que me focar mais na condução, afinal sou uma
adulta com responsabilidades. ‘Porque é
que eu já estou na faixa da esquerda da auto-estrada a esta hora da manhã?’. Perco-me
das notícias e começo a pensar na agenda do dia.
Às 7:30 estou a entrar no hospital, direita ao cacifo. Troco
as sapatilhas por socas de borracha à prova de fluídos orgânicos e de picantes,
os casacos pela bata, atafulho os bolsos com ‘cenas úteis ou potencialmente
úteis’. Depois são 14 lanços de escadas até ao serviço onde trabalho. ‘Bom dia Cláudia!’, ‘Bom dia D. Ana e Maria!’, ‘Bom
dia Enfermeira Carla!’, ‘Bom dia Dr.
Coisinha!’, ‘Bom dia Sr. António! Já
anda a pé? Dormiu bem? Já esta melhor da tosse?’. Bons-dias e sorrisos
fazem-me bem. (Cinzento-clarinho).
A partir das 8h, distribuem-se os doentes novos do
internamento, chegam os primeiros doentes de hospital de dia. Hoje de manhã
está marcado o Sr. António, o Francisco, a Maria e a Sónia. Não me posso
esquecer de rever o resultado micobacteriológico cultural de expectoração do
Pedro. ‘Dra. Catarina, está aqui a Sara
que faltou à consulta na semana passada’. ‘Dra. Catarina, está aqui o Fernando que veio buscar a receita da
vacina da gripe’.
9h30. Teclo a primeira mensagem escrita: ‘Bom dia, Jonny! Acor…’.‘Dra. Catarina, o Manuel perdeu a requisição
das análises, podia imprimir outra vez?’ ‘… -daste bem?’.
11h. Os doentes internados estão a evoluir bem. Tenho que
preparar duas altas para amanhã. ‘Sr.
José, esta manhã já vim ao seu quarto 3x para o observar e o senhor nunca cá
está…’. ‘Dra. Catarina este doente foi
incluído para o estudo mas ainda não assinou o consentimento informado’. A
Joaquina faltou ontem à consulta. ‘Cláudia,
podia fazer-me uma chamada para a Joaquina, sff?’
12h30. Chegou um pedido de colaboração da Ortopedia… (suspiro) Medo!… Já que tenho que descer
2 lanços de escadas, aproveito e desço mais 10 para mudar a bata. ‘Já está outra vez tão suja!...’. 13h35: retorno
12 lanços escada acima. ‘Acho que estou
com (muita) fome…’. (Cinzento-antracite). 13h50 acabei de engolir o almoço.
O doente das 14h está atrasado. ‘Yeahhh,
vou ter 10 minutos mais uns pozinhos para o café’… (Cinzento-clarinho). Teclo
a segunda mensagem escrita: ‘Como vai isso,
Jonny? Almoçaste bem?’
Veio a Maria, a Berta, a Patrícia. O sistema informático
acabou de bloquear pela 74ª vez hoje. Vamos respirar fundo e abrir isto outra
vez… ‘Ó Dra., desculpe o atraso, mas
está uma fila enorme para efectivar a consulta’. ‘Entre lá Rodrigo, não se preocupe. Por aqui também não está fácil…’.
Veio a Sandra e a Isabel. ‘Julieta, o que
se está a passar consigo? Desta vez as análises não estão boas, o vírus deixou
de estar quieto…’ ‘Eu sei, Dra., mas
não tive dinheiro para vir levantar a medicação’… 17h17, já tenho a
consulta atrasada. ‘Desculpe, Rui, eu sei
que a consulta era às 17h, mas precisei de mais tempo com a doente anterior’.
Veio a Soraia e a Madalena. 18h20. Respondo à mensagem escrita: ‘Devo chegar pelas 19h. Sim, eu passo no
supermercado. Então é preciso pão, alface, tomate e massa para o jantar. Mais
alguma coisa?’ O Paulo faltou à consulta. ‘Amanhã tenho que ligar a saber o que se passa’. Nem a desligar o
computador é rápido. (Cinzento). Fecho a porta do gabinete. ‘Até amanhã!’. (Cinzento-claro). ‘Dra. Catarina, Dra. Catarina, já vai
embora?’. ‘Sim…’. ‘É que a Filipa perdeu o acesso…’. (Negro
muito escuro)…
‘Jonny, a Filipa
perdeu o acesso, ainda vou ter que lhe colocar um central…’
Central colocado. O colega que está de Urgência Interna
faz-me a gentileza de ver a radiografia de tórax de controlo. 19h05. Dispo a
bata branca, visto casacos, troco as socas pelas sapatilhas e corro até ao
carro. Chove, mas não quero perder mais tempo a abrir o guarda-chuva. ‘Jonny, estou a sair do hospital!... Não te preocupes, eu compro pão, alface,
tomate e massa para o jantar. (Cinzento-claro). Meto pela faixa da esquerda
na A5. Trânsito parado. (Cinzento-antracite). ‘Jonny, o trânsito está parado, houve um acidente’. 20h15. Estou a
sair do supermercado tão rápido quanto lá entrei. 20h22. Rodo a chave na
fechadura. (Azul celeste). ‘Olá!’. Espero
que o meu abraço consiga reparar todas as minhas judiarias e tento ganhar o
perdão com um beijo. Calço pantufas. A bata ficou no cacifo, mas ‘… blá blá blá o Sr. José… blá blá blá… o
Rodrigo… blá blá blá… a Julieta… blá blá… o central…. blá…’.
De repente fico com um nó na garganta e um buraco negro no
coração… ‘Jonny… trouxe o pão, a alface e
o tomate, mas esqueci-me da massa para o nosso jantar…’.
Esta terça-feira de Outono repete-se por vezes em
terças-feiras de Inverno, em segundas-feiras de Primavera, em quintas-feiras de
Verão… ‘Quem dera que fosse fácil despi-la’.
Qual talhante?… Apesar de me poupares sempre de tirar a pele
ao frango, tenho a certeza que o faria com uma precisão cirúrgica...
1 comentário:
Em resposta a...
http://colchaodeagua.blogspot.pt/2014/10/sindrome-da-bata-branca_14.html
Passado tantos anos, gostei muito de voltar a este lugar. :) Até sempre.
Enviar um comentário