quarta-feira, 14 de março de 2007

As bombas relógio

O
Este post aborda uma realidade que pode ser considerada chocante, não aconselhado a leitores mais sensíveis...

Se a consciência do nosso tamanho é importante para que saibamos colocar-nos no respectivo lugar, há instantes que nos reduzem à insignificância…
Senti-o hoje de forma esmagadora, no âmbito de uma consulta de oncologia a que tenho assisto, em cadeira opcional.
Começo por explicar que, no HSJ, a Oncologia é um serviço com algumas limitações, que funciona fundamentalmente em regime de ambulatório e de forma um tanto ou quanto sectorizada. A cirurgia faz uma abordagem do doente; a oncologia dá seguimento aos que necessitam de quimioterapia (QT) ou radioterapia (RT), ainda que a RT seja numa unidade à parte; a consulta da dor é da competência da anestesia. Como podem calcular, por vezes, para não dizer, muitas vezes, tudo isto é de muito difícil integração… Nem o processo do doente é o mesmo!

Tenho visto sobretudo doentes em estado terminal, a fazer tratamento com intuito paliativo ou curativo, com prognósticos muito reservados. Na globalidade, têm sido consultas pesadas, mas pacíficas. Não há 'más notícias' para serem dadas…
Nesta fase, das duas uma: ou o doente, ainda que o pressinta, não tem capacidade racional/intelectual/cultural, o que preferirem, para avaliar a gravidade do seu problema, ou se tem, já integrou o diagnóstico e o percurso da doença, e sabe exactamente o que vai acontecer. Custa mais pelos familiares que se mantêm em estado de negação, insistindo na possibilidade de solução para o companheiro(a), o filho(a), a mãe/pai, que vêem morrer de dia para dia.

Hoje, à chamada do nr.13, entrou pelo consultório um casal de meia-idade. Ambos empresários, classe sócio-cultural bastante acima da média, aspecto muito jovial e uma relação invulgarmente próxima... muito bonita aos 60 anos.
A história da doença é comum. Sintomatologia inespecífica que foi sendo desvalorizada, com 3 meses de evolução, que motiva a ida ao SU e posteriormente o internamento no serviço de neurologia. Estuda-se a doente, e faz-se o diagnóstico anátomo-patológico de ‘glioblastoma multiforme de celularidade densa…’, ou seja coisa muito ruim.
A senhora inicia tratamento sintomático, tem alta para casa e, porque a bolsa o permite, consulta, a título particular, os melhores neurologistas e neurocirurgiões do país. Todos foram unânimes quanto à impossibilidade de recessão cirúrgica, recomendando um esquema combinado de QT + RT urgente e agressivo. Estavam ali por isso…
Aquando da elaboração do plano terapêutico, percebeu-se que iria haver uma divergência entre os timings da QT + RT, pelo tempo que a QT demora a ser autorizada. (É uma medicação de uso exclusivamente hospitalar, que envolve custos muito elevados, e que requer o aval da administração para ser disponibilizada na farmácia).
A burocracia implicada até em assuntos de vida ou morte… grrrr! :S
E perante a astenia física e emocional da mulher, ver aquele homem, contra tudo e contra todos, esgotar-se nos possíveis e impossíveis para arranjar os benditos fármacos para o imediato…que ele ainda não sabe que não são uma cura...

O cenário rebateu cá dentro… Além de tudo o resto, deixou-me pensar nas bombas relógio que há em nós, determinadas desde que nos formamos como ovo e que, nesse momento, disparam em contagem decrescente, alheias à identidade, à lista das boas acções, ao estatuto social ou à carteira.
A natureza impondo a sua SOBERANIA. Apenas nos permite interceder na velocidade dos ponteiros…
Uma ‘bofetada de luva branca’ na forma de 'cavalo de Tróia' a um ser que se julga de razão superior…

3 comentários:

gobi disse...

Brutal.

Freddy disse...

Mas ainda (e cada vez mais) acredito em Deus!

PS - Acho q este foi o meu 1º comentário sério neste blog... Isto assim não pode continuar!!!

alter ego disse...

:) Eu já acreditei mais...